Nós nunca chegamos aos pensamentos. Elês vêm até nós. ( Heidegger)
Blanchot: a erosão do lugar e a morte
O escritor parece senhor da sua caneta, pode tornar-se capaz de um grande domínio sobre as palavras, sobre o que deseja fazê-las exprimir. Mas esse domínio consegue apenas colocá-lo e mantê-lo em contato com a profunda passividade em que a palavra, não sendo mais do que sua aparência e a sombra de uma palavra, nunca pode ser dominada nem mesmo apreendida, mantém-se inapreensível, o momento indeciso da fascinação.
O gesto de escrever literariamente, para Blanchot, remete a uma “saída do mundo” que leva não a um outro mundo, como utopia ou álibi, mas a uma ausência, não disso ou daquilo, uma espécie de “consciência” do nada, murmúrio do qual pode surgir alguma coisa, ou melhor, sobre o qual a linguagem, abrindo-se, torna-se imaginária
“Escrever é entrar na afirmação da solidão onde o fascínio ameaça. É correr o risco da ausência de tempo, onde reina o eterno recomeço. É passar do Eu ao Ele, de modo que o que me acontece não acontece a ninguém, é anônimo pelo fato de que isso me diz respeito, repete-se numa disseminação infinita. Escrever é dispor a linguagem sob o fascínio e, por ela, nela, permanecer em contato com o meio absoluto, onde a coisa se torna imagem, de alusão a uma figura se converte em alusão ao que é sem figura e, de forma desenhada sobre a ausência torna-se a presença informe dessa ausência, a abertura opaca e vazia sobre o que é quando não há mais ninguém, quando ainda não há ninguém”.
Para Blanchot, a palavra no espaço literário sofre uma metamorfose. Se na linguagem cotidiana a palavra procura nos oferecer as coisas concretas por meio de um sentido abstrato, a escrita literária perde a função designativa para fundar a si mesmo e a seu mundo. A literatura registra o inusitado de uma inexistência que se tornou palavra. Rementendo-se ao mundo, ela o desdobra. Neste desdobramento não se encontra uma explicação do mundo, mas deslumbra-se o outro do mundo
Blanchot lança mão de uma série de figuras espaciais, mergulha no infinito de dobras de uma geografia selvagem: o deserto, o exílio, a errância, o fora... Concebendo a escrita como espaço imaginário, estas figuras não apresentam o outro do mundo como um avesso, nem como uma réplica. Não há entre objeto e imagem uma relação de sucessão, ou subordinação. Uma não deriva da outra. Entre a coisa no mundo e a imagem há simultaneidade. A imagem não é uma re-apresentação nem do mundo, nem da linguagem comum. No espaço literário, a linguagem é sem ouvir sua “fonte”, e o poeta aquele que ouve uma linguagem sem entendimento, um murmúrio. Ela é vazia de sentido porque plena de si mesmo.
Para Blanchot, a imagem é uma indistinta plenitude que está vazia. Instalado neste paradoxo, o imaginário, e por conseqüência a escrita, situados como desvio do mundo ou sua ausência, tornam presente sua desaparição. Escritas e imagens aparecem na escrita de Blanchot intimamente ligadas com a possibilidade inevitável, mas sentida sempre como risco, da morte e desaparecimento
A emergência de tais figuras no texto e pensamento de Blanchot intenta e insere, em sua escrita e reflexão, o que ele postula para literatura. Através delas, ele busca dar vazão à desfiguração a que a escrita literária, em seu entender, se expõe. E por meio delas se percebe a escrita como incessante erosão do lugar no qual se escreve, e do qual se fala.
Escrever promove desalojamentos. Ali, onde deveria falar do infinito, presentificá-lo, provoca um desaparecimento do lugar e não dá lugar a nada. Escrever é se expor a esse desaparecimento e entretanto permanecer, transmutado, no registro escrito. Desapropriação em que “começa” a literatura, de propriedades que ela não se preocupa em restituir. Para delinear estas desapropriações, desalojamentos e deslocamentos pelos quais Blanchot entende os gestos e espaço literário, propõe-se um percurso de leitura, limitado sem dúvida. Mas, espera-se, com a vantagem de conduzir a algum tipo de entendimento: a escrita literária, em Blanchot, trabalha desabrigando um sujeito, um tempo e um espaço, e a si própria.
Num encontro com os meandros em que a filosofia se mete ao repensar seus vínculos com o princípio de subjetividade, Blanchot pensa uma experiência estética que visa abalar o cogito cartesiano
Nesse sentido, as reflexões de Blanchot tendem a questionar o si mesmo, o próprio de um escritor, do poeta, o direito de propriedade da escrita. Lendo Blanchot expõe-se a uma força de indagação: Quem é o escritor? O escritor fala dele mesmo? Ele, o homem, o autor que, segundo os contratos de leitura e recepção estabelecidos, poderíamos identificar com o narrador-personagem-sujeito da escrita? Ele mesmo, o ipse (o mesmo), a categoria da reflexão, do olhar, da identidade, do entre-dois, confere à obra, ao poema, ao romance, ao escrito por fim, um valor, se não testamentário, ao menos testemunhal?
Como potência que rapta o escritor, escrever literariamente arremessa o sujeito (escritor) para fora de si, ele é despossuído da unidade centralizada (o lugar dele) de que “outrora” a escrita era expressão. Pontua-se dessa forma que o gesto literário não é uma expressão de um eu interior. É antes, pelo contrário, o espanto do sujeito que não mais se encontra, que se perdeu, que perdeu seu lugar, sua habitação. Assombro, murmúrio, corpo exposto: não-identidade consigo ou com qualquer figura.
O escrever literário é uma metamorfose em que o eu se transforma em ele. Não um outro sujeito, uma terceira pessoa. A deformação, de que o escrito é sintoma, e escrever é a ação, não é a revelação de uma intimidade, nem do eu, nem de outrem. Insinua um vazio, um desconhecimento, um estranho. Corpo sem interior, sem organização. Deixa-se atravessar pelas forças que o compõe. O exílio e a solidão essencial a que alude Blanchot remetem a essa falta de um lugar para o sujeito, um ser-estar sempre alhures, falta de controle do escritor sob a escrita, que esse arremesso para fora de si implica.
Este desvio dos abismos do eu para estar em abismo ( mise en abyme) ressoa na escrita, de uma maneira informe e obstinada, um deslocamento no tempo e no espaço. Para Blanchot, o espaço literário atua como uma experiência que não é de ninguém (sendo assim, é de todos) e não se prende a um lugar fixo: um espaço e um tempo sem engendramento. Um estranhamento ocupa o lugar que na linguagem comum destina-se ao encadeamento espaço-temporal. Ao se converter em escrita, o espaço literário, que ambiciona se alojar fora de si e fora do mundo, torna-se registro de uma experiência em que as coisas não são ainda. Em literatura, tudo se passa como se nada tivesse acontecido, como se tudo estivesse por acontecer. Acontece no tempo, um outro tempo, que desafia mas também confirma “o mundo dos seres que existem e das coisas que subsistem como presença” [9]. Este outro no tempo pode ser entendido, em O espaço literário, como tempo da aflição, do desamparo:
“O tempo da aflição designa este tempo que, em todos os tempos, é próprio da arte, mas que quando historicamente os deuses faltam e o mundo da verdade vacila, surge a obra como preocupação em que esta possui sua reserva, que a ameaça, que a torna presente e visível. O tempo da arte é o tempo aquém do tempo, que a presença coletiva do divino evoca dissimulando-o, que a história e o trabalho da história revogam negando-o, e que a obra, na aflição do Para que serve, mostra como o que se dissimula no fundo da aparência, o que se reaparece no seio do desaparecimento, o que se realiza na vizinhança e sob ameaça de um desmoronamento radical: aquilo que está em ação quando se “morre” e que, perpetuando-se o ser sob a espécie do não-ser, faz da luz uma fascinação, do objeto a imagem e de nós o coração vazio da repetição eterna.”
O acessar este tempo é encarado no pensamento de Blanchot por meio da remissão ao “olhar de Orfeu”. Este olhar é o movimento do desejo que quebra o “destino” e age a partir de uma decisão inspirada. Ao discorrer sobre a inspiração, Blanchot aponta o deslumbramento que esta temporalidade intervalar causa. Ela não tem começo, um princípio, no sentido de que “para escrever, é preciso que já se escreva”. Mas, esta escrita que aborda o não sério e o não verdadeiro, que toca o vazio do passado e o vazio do futuro, nômade que viaja sem sair do lugar; busca e se enamora de uma autenticidade mais original e extrema, quer abraçar esse inapreensível. Essa contrariedade marca a essência da escrita, e toda sua dificuldade
Escrever é atravessar um espaço onde o limite é a todo o momento superado, mas a um só tempo, pelas voltas (detours) da própria escrita, restabelecido, num ciclo infindável onde impera o eterno recomeço. Escrever é sem fim, e escreve-se sempre apenas para apagar o escrito ou melhor, escrevendo-o através do seu próprio apagar. Escrever literariamente, para Blanchot, implica nesse desalojar da escrita: erosão do lugar que sustenta um esgotamento e paradoxalmente, o inesgotável: o desaparecimento que marca o espaço literário não se extenua
O gesto da escrita literária não se fixa, sua aderência àquilo que lhe escapa é aflita, mas não inexistente. O gesto literário irrompe no limiar da escrita, que brota como centelha, ou salto, de uma espera infinita. A natureza desse gesto é algo que se elucida, reescrevendo-a, mas não se explica. O trabalho de pensamento de Blanchot é, talvez, uma pesquisa, mas investiga tateando algo só encontrado realizando-se, cegamente. Inscreve-se numa incerteza radical: nunca se sabe com certeza, com segurança, com garantias, sobre a arte, a escrita, a literatura. Porque esse lugar de onde se parte para pensá-los se arruína na realização a que deseja se remeter. Nesse lugar que esvai ao se escrever, que vai se tornando ausente, a escrita literária atenta para um fracasso da linguagem comum, cotidiana, em “dar conta” do real, falha diante a qual só resta desaparecer
Esse desaparecer é abordado, por Blanchot, por evocação a Orfeu. Não é por acaso que na primeira página de O espaço literário se encontra (como orientação ou alerta?) a declaração, por lealdade metódica, que revela as páginas intituladas “O olhar de Orfeu” como centro fixo, mas esquivo; “e quanto mais central, mais incerto e imperioso”. Por Orfeu recorda-se que arte e desaparecimento pertencem à profundidade de um mesmo movimento.
Quando Orfeu desce em busca de Eurídice, a arte é a potência pela qual a noite se abre. A noite, pela força da arte, acolhe-o, torna-se a intimidade acolhedora, o entendimento, e o acordo da primeira noite. Mas é para Eurídice que Orfeu desce: Eurídice é, para ele, o extremo que a arte pode atingir, ela é, sob um nome que a dissimula e sob um véu que o cobre, ponto profundamente obscuro para o qual parecem tender a arte, o desejo, a morte, a noite. Ela é o instante em que a essência da noite se aproxima como a outra noite
Orfeu é um signo misterioso e central em O espaço literário. Apontado para a origem, indica um movimento de pura contradição, e está ligado ao infinito da metamorfose, da transmutação. Para Blanchot, tudo no gesto literário é arrastado pelo olhar de Orfeu, conjugando a erosão dos três elementos apontados acima, quais sejam, sujeito, tempo-espaço, e escrita, na falta de lugar que ele chama por morte
Por Orfeu, na escrita de Blanchot, lembramos
que aquele que canta deve entregar-se inteiramente ao jogo, e no fim, perecer, porquanto ele só fala quando a aproximação antecipada da morte, a separação adiantada, o adeus feito de antemão, apagam nele a falsa certeza do ser, dissipam as seguranças protetoras, entregam-no a uma insegurança ilimitada
Sem garantias, imerso e impregnado nesta (desta) precariedade, o gesto de escrita literária ainda é, sob efeito dessa desmedida que Blanchot chama de olhar de Orfeu, atraído e arrastado
para o ponto onde ele mesmo, o poema eterno, entra em seu próprio desaparecimento, onde se identifica com a potência que o dilacera, e converte-se na pura contradição, o deus perdido, a ausência de deus, o vazio original de que fala a primeira Elegia a propósito do mito de Linus e a partir do qual se propaga, através do espaço assustado, a novela ininterrupta que se forma do silêncio- murmúrio do interminável
Experiência sem medida da profundidade, a escrita aparecerá como trasmutação que não somente nos conduz à morte, mas a metamorfoseia num movimento infinito de morrer. Para o que morre, a morte infinita é morrer cada vez mais na intimidade da morte, e nessa repetição continuar possibilitando essas transformações incessantemente. Ou seja, continuar escrevendo. A afirmação sem fim da escrita literária, em Blanchot, não se constitui como uma reviravolta dialética. Nem é uma apologia da negação absoluta. Ela fabrica a erosão do lugar da negação. Como devir-morte, escrever é aprender, reconhecer, desaparecer, e re-encontrar, com ela
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sábado, 11 de julho de 2009
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