Roteiro para o primeiro encontro:
I - O ENCONTRO COM O IMAGINáRIO
No primeiro parágrafo do texto é outra vez recontada a história que ecoa os gregos:
As sereias que pareciam cantar. Um canto que não satisfazia e que rasga uma distância ao indicar a direção onde o verdadeiro canto começaria. Cantavam para os navegantes, homens do mar, homens do risco, e que apontavam a um lugar onde só restaria desaparecer porque a música, nessa região de nascente e de origem, tinha ela próprio desaparecido mais completamente do que em qualquer outro sitio do mundo. O que nos resta é esse mar onde, ouvidos fechados, se afundam os vivos, e onde as sereias, como prova da sua boa vontade, deviam, também elas, desaparecer um dia.
Aqui abre-se desde logo um questionamento. Esse convite das sereias, essa tentação que Ulisses é chamado a aceitar e que se contorce negando-a, aponta (que verbo é esse? aponta, indica, direciona, vislumbra?) abre a distância entre a voz e a origem da voz, o canto e a sua felicidade. Há aqui uma relação entre o espaço do absoluto – espaço onde o limite do canto, a sua origem, é o silêncio – e o modo como cada canto existe no tempo? Para que cada canto exista é preciso que ele escute o chamado para onde aponta todo o canto, o chamado para o lugar onde ele não está e só poderia chegar se cessasse de existir como canto? E as sereias também não poderiam elas próprias cantar esse lugar – pois ele é o silêncio – mas, na imperfeição, apenas apontá-lo, indicá-lo? Entre o canto e a sua origem não há evolução, mas ruptura, metamorfose, transformação?
E então, depois dessa condensação onde o que há é enigma, paisagem traçada, avança-se por fragmentos:
De que natureza era o canto das sereias? Porque é que a sua falha – o canto que indica, aponta uma direção e não é a própria origem – é tão poderosa?
De duas, uma:
Uma: era um canto inumano. Desperta um prazer imenso que não é possível obter em vida. Essa possibilidade, que Blanchot afasta, seria a tentação do exótico, do absurdo, do reservado a iluminados ou decadentes, de qualquer forma não a todos. Que chegaria como o inegável, o radicalmente outro, o inumano ou o divino. É difícil ter fôlego para negar esse argumento até o último passo, em todas as suas formas.
Outra: o estranho era o encantamento, o que o canto desperta, como ele envolve, como encanta. O canto era real, comum, secreto, quotidiano. E cantado por potências imaginárias faziam ver em cada homem o inumano de qualquer canto humano, lhe devolviam a dimensão do próprio canto, convidava-o a desaparecer no abismo de cada palavra. Evidência do canto? Rompimento dos ouvidos tapados em que cantamos insistetemente todos os dias, rompimento do manto liso em que escorregamos a nossa existência sem dela nos aperceber? O que vem romper é algo que só nos lembra da nossa própria dimensão? Cuidado: aqui o argumento de antes, todo transformado, volta: não retorna o maravilhoso, o canto excepicional de qualquer homem, mas é o desfazer desse maravilhoso que aqui entra em jogo. O que é então? Vertigem? Arrebatamento?
O que era o canto: uma navegação: era uma distancia, e o que ele revelava era a possibilidade de percorrer essa distância, de fazer do canto o movimento para o canto e desse movimento a expressão do máximo desejo.
Estranha navegação, para que fim?
Quem se aproximou mais não fez que se aproximar: pereceram por impaciência, afirmando prematuramente que era ali o ponto onde queriam chegar ou por passarem do ponto, por de repente ser tarde demais. Ponto inatingível, ponto no qual o canto coincidiria consigo mesmo sem resto, ponto desejado e sempre em outro lugar que destina todo canto a vagar, canto errante?
Algo que me parece uma chave: o encantamento, devido a uma promessa enigmática, expunha os homens a serem infiéis a eles próprios, ao seu canto humano e até à essência do canto, despertando a esperança e o desejo de um além maravilhoso, e esse além não representava senão um deserto, como se a região-mãe da musica fosse o único sítio completamente privado de música, um lugar de aridez e de secura onde o silêncio, como o ruído, queimava, naquele que se dispusera a cantar, todos os caminhos de acesso ao canto.
Aquilo que o canto das sereias revela é ao mesmo tempo o que impossibilita? Assim: o que o canto diz é que há um lugar, uma origem do canto, para o qual é preciso caminhar sem cessar, caminhar infinitamente, e resistir a tentação de lançar a âncora, de dizer é aqui?
Vencidas as sereias pelo poder da técnica (!!), que sempre pretenderá jogar sem perigo com as potências irreais (inspiradas), nem por isso Ulisses ficou liberto. Elas atraíram-no aí onde ele não queria cair, e, ocultas no interior da odisséia que virou o seu túmulo, arrastaram-no, a ele e a muitos outros, para essa navegação feliz, infeliz, que é a da narrativa, o canto já não imediato, mas contado, por isso agora aparentemente inofensivo, ode que se tornou episódio.
Daqui se desprende: a narrativa só é fora do ponto de origem, fora do imediato, afirmação do contado. Ele negou as sereias, elas assim o aceitaram e fizeram da sua história o seu tumulo, lá elas também já cantam, mas vencidas, sem a indecidibilidade do instante no qual convidam a origem.
Mas peraí: então sobreviver às sereias, as tendo encontrado, é a fortuna de Ulisses?
A lei secreta da narrativa
Há sempre uma luta obscura entre a narrativa e o encontro com as sereias, esse canto enigmático que é poderoso pela sua falha. (como reabrir essa frase depois de tudo isso? O poder está na falha? Em dar a direção e não o próprio lugar?)
Luta em que a prudência de Ulisses é tradição.
O romance nasceu dessa luta.
Qual a diferença entre romance e narrativa?
A narrativa começa onde o romance não avança e todavia conduz pelas suas recusas e pela sua rica negligência. A narrativa é heroicamente e pretensiosamente a narrativa de um único episódio, o do encontro entre Ulisses e as sereias.
E retorna a ameaça daquela postura outra vez latente:
Estamos longe de pressentir o caráter da narrativa quando vemos nela o relato de um acontecimento excepicional que alguém tentaria reproduzir... o canto das sereias não é especial, mas comum, singular.
Outra concentração: a narrativa é o movimento para um ponto, não apenas desconhecido, ignorado, estranho, mas tal que parece não ter, antecipadamente e fora desse movimento, qualquer espécie de realidade, e tão imperioso no entanto que só ele atrai a narrativa, de modo que essa nem sequer pode ‘começar’ antes de o ter atingido, e no entanto apenas a narrativa e o movimento imprevisível da narrativa fornecem o espaço onde o ponto se torna real, poderoso e atraente.
Quando Ulisses se torna Homero
Ouvir o canto das sereias é, para aquele que era Ulisses, passar a ser Homero, e no entanto apenas na narrativa Homero realiza o encontro real em que Ulisses se torna aquele que entra em contacto com a força dos elementos e com a voz do abismo.
Reunir no mesmo espaço Ulisses e as sereias, Achab e a baleia, eis o voto secreto que faz de Ulisses Homero e de Achab Melville e do mundo que resulta dessa união maior o mais terrível e o mais belo dos mundos possíveis. Um livro afinal, nada mais que um livro.
Quem escreve é quem coloca no mesmo mar Ulisses e as sereais, essas potências que querem tudo, que desejam o encontro onde a coexistência seria impossível – a escrita desse encontro é quem assina.
qual a diferença entre Ulisses e achab? Melville e Homero? –
A metamorfose
a ação que a narrativa torna presente é a da metamorfose.
A narrativa tem para progredir esse outro tempo, essa outra navegação que faz com que o tempo real se torne pouco a pouco embora imediatamente (tempo da metamorfose) imaginário, canto enigmático, que permanece sempre à distância e designa essa distância como um espaço a percorrer e o lugar aonde conduz como o ponto onde cantar deixará de ser um logro.
A narrativa quer percorrer esse espaço e o que a move é a transformação exigida pela plenitude vazia desse espaço, transformação daquele que escreve e da própria narrativa. A narrativa não cessa de caminhar para esse ponto de encontro, encontro que ocorre agora e esta sempre por vir.
Onde está o nó dessa transformação? No tempo: tempo próprio da narrativa, que se introduz na duração do narrador de uma maneira que a transforma, tempo das metamorfoses onde coincidem, numa simultaneidade imaginária e sob a forma do espaço que a arte busca realizar, os diferentes êxtases temporais.
Aqui se abre mais questionamentos e a passagem ao próximo texto: um encontro que é agora e resta sempre por vir acontece apenas com uma mutação da noção de tempo e que chama Proust. Qual é esse tempo em que os tempos se sobrepõem, em que por vir e agora, e desde sempre coincidem?
II- A EXPERIêNCIA DE PROUST
O segredo da escrita
Pode haver narrativa pura? Toda a narrativa, quanto mais não seja por discrição, procura dissimular-se na espessura romanesca. E assim, há escritores que fazem dessa espessura um espaço cintilante, há Proust para quem tudo se passa como se ela se sobrepusesse com êxito à navegação da sua vida real, aquela que o levou através do tempo destruidor, até ao ponto fabuloso onde encontra o acontecimento que torna possível a narrativa.
A narrativa – essa narrativa que não está em todas as palavras dos romances, mas que só em alguns se manifesta - só é possível no encontro com o acontecimento? Ela é esse próprio acontecimento, como foi dito no texto anterior?
Os quatro tempos
Há o tempo real, destruidor, que produz a morte e a morte do esquecimento. O mesmo tempo, através da ação destruidora nos dá também o que nos tira, e infinitamente mais, pois que nos dá as coisas, os acontecimentos e os seres numa presença irreal que os eleva a esse ponto em que nos comovem – felicidade das lembranças espontâneas.
Reviravolta mais estranha do tempo e que interessa aqui:
Aquele incidente insignificante que ocorreu a um dado momento e que esquecido, ou que passou despercebido, eis que o curso do tempo o traz de novo, não como uma lembrança, mas como um fato real, na língua de Proust uma sensação, que ocorre de novo, num novo momento do tempo.
O passo em Guermantes e o passo em Veneza subitamente sobrepostos, rasgando a trama do tempo através desse rasgão introduzindo um novo tempo: fora do tempo, diz Proust com precipitação. Diz ele: o tempo é abolido, uma vez que, simultaneamente, num gesto real, fugidio mas irrefutável, eu agarro os instantes - não um passado e um presente, mas uma mesma presença que faz coincidir numa simultaneidade sensível momentos incompatíveis, separados por todo o curso da duração. Eis, pois, o tempo apagado pelo próprio tempo: eis a morte que é obra do tempo, suspensa, inofenciva, neutralizada.
Liberto da ordem do tempo: essa mudança que prenderia a narrativa na sequencia, essa transformação é o que a funda? Mas, se está abolida ou suspensa a sequencia, isso não pode acontecer como instante que prediz a obra, mas instante simultâneo a ela?
Viver a abolição do tempo, viver esse movimento, rápido como um relâmpago, pelo qual dois instantes, infinitamente separados, vêm pouco a pouco embora imediatamente (tempo das metamorfoses) ao encontro um do outro, unindo-se como duas presenças que, pela metamorfose do desejo, se identificasse, é percorrer toda a realidade do tempo, e ao percorrê-la experimentar o tempo como espaço e lugar vazio, quer dizer, livre dos acontecimentos que habitualmente o preenchem. Tempo puro, sem acontecimentos, vacância movente, distância agitada, espaço interior em devir onde os êxtases do tempo se dispõem numa simultaneidade fascinante, que é então tudo isso? O próprio tempo da narrativa, o tempo que não está fora do tempo, mas que se experimenta como exterior, sob a forma de um espaço, esse espaço imaginário onde a arte encontra e dispõe os seus recursos.
O tempo é o passo. É preciso que tudo seja simultâneo para que a narrativa possa ser o gesto de contar – colocar em sequencia de palavras – esse simultâneo que é o canto das sereias? Assim, que as sereias façam da narrativa o seu túmulo é necessário que o tempo nelas seja esse da simultaneidade? Onde está Nietzsche nisso?
O tempo de escrever
Para Proust, a experiência desse tempo é a única possibilidade da escrita.
A transformação do tempo num espaço imaginário – essência da literatura:
O tempo transformado num espaço imaginário – espaço próprio das imagens – nessa ausência movente, sem acontecimentos que a dissimulem, sem presença que a obstrua, nesse vazio sempre em devir: esse longe e essa distância que constituem o meio e o princípio das metamorfoses e daquilo que Proust chama metáforas, aí onde já não se trata de fazeer psicologia, mas pelo contrário já não há interioridade, pois tudo o que é interior se desdobra para fora, tomando aí a forma de uma imagem. Sim, nesse tempo, tudo se torna imagem, e a essência da imagem consiste em ser inteiramente sem intimidade, e no entanto mais inacesível e mais misteriosa que o pensamento do foro íntimo; sem significação, mas apelando à profundidade de todo o sentido possível: irrevelada e contudo manifesta, dotada dessa presença – ausência que constitui o atractivo e o fascínio das sereias.
Gente!: que relação é essa? O canto das sereias chega tb aqui, como se aquilo que com ele anuncia é a própria essência da literatura? Qual a realçao entre o espaço imaginário e o canto imperfeito?
Onde se produziu esse experiência (a da sopreposição temporal)? Em que tempo? Em que mundo? Em quem?
Essa experiência só acontece no tempo da narrativa: quando não é já o Proust real, nem o escritor que tem o poder de falar, mas a sua metamorfose nessa sombra que é o narrador ao tornar-se personagem do livro, o que na narrativa escreve uma narrativa que é a própria obra e que produz por sua vez as outras metamorfoses dele próprio que são os diferentes eus cujas experiências conta. E, do mesmo modo, o acontecimento que descreve não é apenas o acontecimento que se produz no mundo da narrativa, nessa sociedade Guermantes que não tem verdade a não ser pela ficção, mas acontecimento e advento da própria narrativa e realização, na narrativa, desse tempo original da narrativa que ele se limita a cristalizar numa estrutura fascinante, esse poder que faz coincidir, num mesmo ponto fabuloso, o presente, o passado, o futuro, pois que nesse ponto todo o futuro da obra está presente, é dado com a literatura.
Onde se encontram todos os instantes do tempo? Na idéia de condição? Condição da narrativa? Condição da literatura? O canto das sereias é uma condição?
Imediatamente embora pouco a pouco
O nada que o chama.
A revelação não é de modo algum o efeito necessário de um desenvolvimento progressivo: tem a irregularidade do acaso, a força gratuita de um dom imerecido que em nada recompensa um longo e Sábio trabalho de aprofundamento.
O canto das sereias, a irrupção do espaço imaginário escapa ao poder dizer? Ela é acontecimento? Então escreve-se, escreve-se e essa passagem chega ou não? E como a percebemos?
O apelo do desconhecido
Quando o encontro dos instantes temporais abrem o espaço imaginário, engendra-se também e desde sempre um movimento sem repouso no qual esses instantes escapam a fixação – apelo do desconhecido?
A espantosa paciência