sábado, 11 de julho de 2009

Nós nunca chegamos aos pensamentos. Elês vêm até nós. ( Heidegger)


Blanchot: a erosão do lugar e a morte

O escritor parece senhor da sua caneta, pode tornar-se capaz de um grande domínio sobre as palavras, sobre o que deseja fazê-las exprimir. Mas esse domínio consegue apenas colocá-lo e mantê-lo em contato com a profunda passividade em que a palavra, não sendo mais do que sua aparência e a sombra de uma palavra, nunca pode ser dominada nem mesmo apreendida, mantém-se inapreensível, o momento indeciso da fascinação.
O gesto de escrever literariamente, para Blanchot, remete a uma “saída do mundo” que leva não a um outro mundo, como utopia ou álibi, mas a uma ausência, não disso ou daquilo, uma espécie de “consciência” do nada, murmúrio do qual pode surgir alguma coisa, ou melhor, sobre o qual a linguagem, abrindo-se, torna-se imaginária

“Escrever é entrar na afirmação da solidão onde o fascínio ameaça. É correr o risco da ausência de tempo, onde reina o eterno recomeço. É passar do Eu ao Ele, de modo que o que me acontece não acontece a ninguém, é anônimo pelo fato de que isso me diz respeito, repete-se numa disseminação infinita. Escrever é dispor a linguagem sob o fascínio e, por ela, nela, permanecer em contato com o meio absoluto, onde a coisa se torna imagem, de alusão a uma figura se converte em alusão ao que é sem figura e, de forma desenhada sobre a ausência torna-se a presença informe dessa ausência, a abertura opaca e vazia sobre o que é quando não há mais ninguém, quando ainda não há ninguém”.

Para Blanchot, a palavra no espaço literário sofre uma metamorfose. Se na linguagem cotidiana a palavra procura nos oferecer as coisas concretas por meio de um sentido abstrato, a escrita literária perde a função designativa para fundar a si mesmo e a seu mundo. A literatura registra o inusitado de uma inexistência que se tornou palavra. Rementendo-se ao mundo, ela o desdobra. Neste desdobramento não se encontra uma explicação do mundo, mas deslumbra-se o outro do mundo

Blanchot lança mão de uma série de figuras espaciais, mergulha no infinito de dobras de uma geografia selvagem: o deserto, o exílio, a errância, o fora... Concebendo a escrita como espaço imaginário, estas figuras não apresentam o outro do mundo como um avesso, nem como uma réplica. Não há entre objeto e imagem uma relação de sucessão, ou subordinação. Uma não deriva da outra. Entre a coisa no mundo e a imagem há simultaneidade. A imagem não é uma re-apresentação nem do mundo, nem da linguagem comum. No espaço literário, a linguagem é sem ouvir sua “fonte”, e o poeta aquele que ouve uma linguagem sem entendimento, um murmúrio. Ela é vazia de sentido porque plena de si mesmo.
Para Blanchot, a imagem é uma indistinta plenitude que está vazia. Instalado neste paradoxo, o imaginário, e por conseqüência a escrita, situados como desvio do mundo ou sua ausência, tornam presente sua desaparição. Escritas e imagens aparecem na escrita de Blanchot intimamente ligadas com a possibilidade inevitável, mas sentida sempre como risco, da morte e desaparecimento

A emergência de tais figuras no texto e pensamento de Blanchot intenta e insere, em sua escrita e reflexão, o que ele postula para literatura. Através delas, ele busca dar vazão à desfiguração a que a escrita literária, em seu entender, se expõe. E por meio delas se percebe a escrita como incessante erosão do lugar no qual se escreve, e do qual se fala.
Escrever promove desalojamentos. Ali, onde deveria falar do infinito, presentificá-lo, provoca um desaparecimento do lugar e não dá lugar a nada. Escrever é se expor a esse desaparecimento e entretanto permanecer, transmutado, no registro escrito. Desapropriação em que “começa” a literatura, de propriedades que ela não se preocupa em restituir. Para delinear estas desapropriações, desalojamentos e deslocamentos pelos quais Blanchot entende os gestos e espaço literário, propõe-se um percurso de leitura, limitado sem dúvida. Mas, espera-se, com a vantagem de conduzir a algum tipo de entendimento: a escrita literária, em Blanchot, trabalha desabrigando um sujeito, um tempo e um espaço, e a si própria.
Num encontro com os meandros em que a filosofia se mete ao repensar seus vínculos com o princípio de subjetividade, Blanchot pensa uma experiência estética que visa abalar o cogito cartesiano
Nesse sentido, as reflexões de Blanchot tendem a questionar o si mesmo, o próprio de um escritor, do poeta, o direito de propriedade da escrita. Lendo Blanchot expõe-se a uma força de indagação: Quem é o escritor? O escritor fala dele mesmo? Ele, o homem, o autor que, segundo os contratos de leitura e recepção estabelecidos, poderíamos identificar com o narrador-personagem-sujeito da escrita? Ele mesmo, o ipse (o mesmo), a categoria da reflexão, do olhar, da identidade, do entre-dois, confere à obra, ao poema, ao romance, ao escrito por fim, um valor, se não testamentário, ao menos testemunhal?
Como potência que rapta o escritor, escrever literariamente arremessa o sujeito (escritor) para fora de si, ele é despossuído da unidade centralizada (o lugar dele) de que “outrora” a escrita era expressão. Pontua-se dessa forma que o gesto literário não é uma expressão de um eu interior. É antes, pelo contrário, o espanto do sujeito que não mais se encontra, que se perdeu, que perdeu seu lugar, sua habitação. Assombro, murmúrio, corpo exposto: não-identidade consigo ou com qualquer figura.
O escrever literário é uma metamorfose em que o eu se transforma em ele. Não um outro sujeito, uma terceira pessoa. A deformação, de que o escrito é sintoma, e escrever é a ação, não é a revelação de uma intimidade, nem do eu, nem de outrem. Insinua um vazio, um desconhecimento, um estranho. Corpo sem interior, sem organização. Deixa-se atravessar pelas forças que o compõe. O exílio e a solidão essencial a que alude Blanchot remetem a essa falta de um lugar para o sujeito, um ser-estar sempre alhures, falta de controle do escritor sob a escrita, que esse arremesso para fora de si implica.
Este desvio dos abismos do eu para estar em abismo ( mise en abyme) ressoa na escrita, de uma maneira informe e obstinada, um deslocamento no tempo e no espaço. Para Blanchot, o espaço literário atua como uma experiência que não é de ninguém (sendo assim, é de todos) e não se prende a um lugar fixo: um espaço e um tempo sem engendramento. Um estranhamento ocupa o lugar que na linguagem comum destina-se ao encadeamento espaço-temporal. Ao se converter em escrita, o espaço literário, que ambiciona se alojar fora de si e fora do mundo, torna-se registro de uma experiência em que as coisas não são ainda. Em literatura, tudo se passa como se nada tivesse acontecido, como se tudo estivesse por acontecer. Acontece no tempo, um outro tempo, que desafia mas também confirma “o mundo dos seres que existem e das coisas que subsistem como presença” [9]. Este outro no tempo pode ser entendido, em O espaço literário, como tempo da aflição, do desamparo:

“O tempo da aflição designa este tempo que, em todos os tempos, é próprio da arte, mas que quando historicamente os deuses faltam e o mundo da verdade vacila, surge a obra como preocupação em que esta possui sua reserva, que a ameaça, que a torna presente e visível. O tempo da arte é o tempo aquém do tempo, que a presença coletiva do divino evoca dissimulando-o, que a história e o trabalho da história revogam negando-o, e que a obra, na aflição do Para que serve, mostra como o que se dissimula no fundo da aparência, o que se reaparece no seio do desaparecimento, o que se realiza na vizinhança e sob ameaça de um desmoronamento radical: aquilo que está em ação quando se “morre” e que, perpetuando-se o ser sob a espécie do não-ser, faz da luz uma fascinação, do objeto a imagem e de nós o coração vazio da repetição eterna.”

O acessar este tempo é encarado no pensamento de Blanchot por meio da remissão ao “olhar de Orfeu”. Este olhar é o movimento do desejo que quebra o “destino” e age a partir de uma decisão inspirada. Ao discorrer sobre a inspiração, Blanchot aponta o deslumbramento que esta temporalidade intervalar causa. Ela não tem começo, um princípio, no sentido de que “para escrever, é preciso que já se escreva”. Mas, esta escrita que aborda o não sério e o não verdadeiro, que toca o vazio do passado e o vazio do futuro, nômade que viaja sem sair do lugar; busca e se enamora de uma autenticidade mais original e extrema, quer abraçar esse inapreensível. Essa contrariedade marca a essência da escrita, e toda sua dificuldade
Escrever é atravessar um espaço onde o limite é a todo o momento superado, mas a um só tempo, pelas voltas (detours) da própria escrita, restabelecido, num ciclo infindável onde impera o eterno recomeço. Escrever é sem fim, e escreve-se sempre apenas para apagar o escrito ou melhor, escrevendo-o através do seu próprio apagar. Escrever literariamente, para Blanchot, implica nesse desalojar da escrita: erosão do lugar que sustenta um esgotamento e paradoxalmente, o inesgotável: o desaparecimento que marca o espaço literário não se extenua
O gesto da escrita literária não se fixa, sua aderência àquilo que lhe escapa é aflita, mas não inexistente. O gesto literário irrompe no limiar da escrita, que brota como centelha, ou salto, de uma espera infinita. A natureza desse gesto é algo que se elucida, reescrevendo-a, mas não se explica. O trabalho de pensamento de Blanchot é, talvez, uma pesquisa, mas investiga tateando algo só encontrado realizando-se, cegamente. Inscreve-se numa incerteza radical: nunca se sabe com certeza, com segurança, com garantias, sobre a arte, a escrita, a literatura. Porque esse lugar de onde se parte para pensá-los se arruína na realização a que deseja se remeter. Nesse lugar que esvai ao se escrever, que vai se tornando ausente, a escrita literária atenta para um fracasso da linguagem comum, cotidiana, em “dar conta” do real, falha diante a qual só resta desaparecer
Esse desaparecer é abordado, por Blanchot, por evocação a Orfeu. Não é por acaso que na primeira página de O espaço literário se encontra (como orientação ou alerta?) a declaração, por lealdade metódica, que revela as páginas intituladas “O olhar de Orfeu” como centro fixo, mas esquivo; “e quanto mais central, mais incerto e imperioso”. Por Orfeu recorda-se que arte e desaparecimento pertencem à profundidade de um mesmo movimento.

Quando Orfeu desce em busca de Eurídice, a arte é a potência pela qual a noite se abre. A noite, pela força da arte, acolhe-o, torna-se a intimidade acolhedora, o entendimento, e o acordo da primeira noite. Mas é para Eurídice que Orfeu desce: Eurídice é, para ele, o extremo que a arte pode atingir, ela é, sob um nome que a dissimula e sob um véu que o cobre, ponto profundamente obscuro para o qual parecem tender a arte, o desejo, a morte, a noite. Ela é o instante em que a essência da noite se aproxima como a outra noite

Orfeu é um signo misterioso e central em O espaço literário. Apontado para a origem, indica um movimento de pura contradição, e está ligado ao infinito da metamorfose, da transmutação. Para Blanchot, tudo no gesto literário é arrastado pelo olhar de Orfeu, conjugando a erosão dos três elementos apontados acima, quais sejam, sujeito, tempo-espaço, e escrita, na falta de lugar que ele chama por morte
Por Orfeu, na escrita de Blanchot, lembramos

que aquele que canta deve entregar-se inteiramente ao jogo, e no fim, perecer, porquanto ele só fala quando a aproximação antecipada da morte, a separação adiantada, o adeus feito de antemão, apagam nele a falsa certeza do ser, dissipam as seguranças protetoras, entregam-no a uma insegurança ilimitada

Sem garantias, imerso e impregnado nesta (desta) precariedade, o gesto de escrita literária ainda é, sob efeito dessa desmedida que Blanchot chama de olhar de Orfeu, atraído e arrastado
para o ponto onde ele mesmo, o poema eterno, entra em seu próprio desaparecimento, onde se identifica com a potência que o dilacera, e converte-se na pura contradição, o deus perdido, a ausência de deus, o vazio original de que fala a primeira Elegia a propósito do mito de Linus e a partir do qual se propaga, através do espaço assustado, a novela ininterrupta que se forma do silêncio- murmúrio do interminável
Experiência sem medida da profundidade, a escrita aparecerá como trasmutação que não somente nos conduz à morte, mas a metamorfoseia num movimento infinito de morrer. Para o que morre, a morte infinita é morrer cada vez mais na intimidade da morte, e nessa repetição continuar possibilitando essas transformações incessantemente. Ou seja, continuar escrevendo. A afirmação sem fim da escrita literária, em Blanchot, não se constitui como uma reviravolta dialética. Nem é uma apologia da negação absoluta. Ela fabrica a erosão do lugar da negação. Como devir-morte, escrever é aprender, reconhecer, desaparecer, e re-encontrar, com ela

[

segunda-feira, 25 de maio de 2009

O CANTO DAS SEREIAS



Roteiro para o primeiro encontro:

 

I - O ENCONTRO COM O IMAGINáRIO

 

No primeiro parágrafo do texto é outra vez recontada a história que ecoa os gregos:

 

As sereias que pareciam cantar. Um canto que não satisfazia e que rasga uma distância ao indicar a direção onde o verdadeiro canto começaria. Cantavam para os navegantes, homens do mar, homens do risco, e que apontavam a um lugar onde só restaria desaparecer porque a música, nessa região de nascente e de origem, tinha ela próprio desaparecido mais completamente do que em qualquer outro sitio do mundo. O que nos resta é esse mar onde, ouvidos fechados, se afundam os vivos, e onde as sereias, como prova da sua boa vontade, deviam, também elas, desaparecer um dia.

 

Aqui abre-se desde logo um questionamento. Esse convite das sereias, essa tentação que Ulisses é chamado a aceitar e que se contorce negando-a, aponta (que verbo é esse? aponta, indica, direciona, vislumbra?) abre a distância entre a voz e a origem da voz, o canto e a sua felicidade. Há aqui uma relação entre o espaço do absoluto – espaço onde o limite do canto, a sua origem, é o silêncio – e o modo como cada canto existe no tempo? Para que cada canto exista é preciso que ele escute o chamado para onde aponta todo o canto, o chamado para o lugar onde ele não está e só poderia chegar se cessasse de existir como canto? E as sereias também não poderiam elas próprias cantar esse lugar – pois ele é o silêncio – mas, na imperfeição, apenas apontá-lo, indicá-lo? Entre o canto e a sua origem não há evolução, mas ruptura, metamorfose, transformação?

 

E então, depois dessa condensação onde o que há é enigma, paisagem traçada, avança-se por fragmentos:

 

De que natureza era o canto das sereias? Porque é que a sua falha – o canto que indica, aponta uma direção e não é a própria origem – é tão poderosa?

De duas, uma:

 

Uma: era um canto inumano. Desperta um prazer imenso que não é possível obter em vida. Essa possibilidade, que Blanchot afasta, seria a tentação do exótico, do absurdo, do reservado a iluminados ou decadentes, de qualquer forma não a todos. Que chegaria como o inegável, o radicalmente outro, o inumano ou o divino. É difícil ter fôlego para negar esse argumento até o último passo, em todas as suas formas.

 

Outra: o estranho era o encantamento, o que o canto desperta, como ele envolve, como encanta. O canto era real, comum, secreto, quotidiano. E cantado por potências imaginárias faziam ver em cada homem o inumano de qualquer canto humano, lhe devolviam a dimensão do próprio canto, convidava-o a desaparecer no abismo de cada palavra. Evidência do canto? Rompimento dos ouvidos tapados em que cantamos insistetemente todos os dias, rompimento do manto liso em que escorregamos a nossa existência sem dela nos aperceber? O que vem romper é algo que só nos lembra da nossa própria dimensão? Cuidado: aqui o argumento de antes, todo transformado, volta: não retorna o maravilhoso, o canto excepicional de qualquer homem, mas é o desfazer desse maravilhoso que aqui entra em jogo. O que é então? Vertigem? Arrebatamento?

 

O que era o canto: uma navegação: era uma distancia, e o que ele revelava era a possibilidade de percorrer essa distância, de fazer do canto o movimento para o canto e desse movimento a expressão do máximo desejo.

 

Estranha navegação, para que fim?

Quem se aproximou mais não fez que se aproximar: pereceram por impaciência, afirmando prematuramente que era ali o ponto onde queriam chegar ou por passarem do ponto, por de repente ser tarde demais. Ponto inatingível, ponto no qual o canto coincidiria consigo mesmo sem resto, ponto desejado e sempre em outro lugar que destina todo canto a vagar, canto errante?

 

Algo que me parece uma chave: o encantamento, devido a uma promessa enigmática, expunha os homens a serem infiéis a eles próprios, ao seu canto humano e até à essência do canto, despertando a esperança e o desejo de um além maravilhoso, e esse além não representava senão um deserto, como se a região-mãe da musica fosse o único sítio completamente privado de música, um lugar de aridez e de secura onde o silêncio, como o ruído, queimava, naquele que se dispusera a cantar, todos os caminhos de acesso ao canto.

 

Aquilo que o canto das sereias revela é ao mesmo tempo o que impossibilita? Assim: o que o canto diz é que há um lugar, uma origem do canto, para o qual é preciso caminhar sem cessar, caminhar infinitamente, e resistir a tentação de lançar a âncora, de dizer é aqui? 

 

Vencidas as sereias pelo poder da técnica (!!), que sempre pretenderá jogar sem perigo com as potências irreais (inspiradas), nem por isso Ulisses ficou liberto. Elas atraíram-no aí onde ele não queria cair, e, ocultas no interior da odisséia que virou o seu túmulo, arrastaram-no, a ele e a muitos outros, para essa navegação feliz, infeliz, que é a da narrativa, o canto já não imediato, mas contado, por isso agora aparentemente inofensivo, ode que se tornou episódio.

Daqui se desprende: a narrativa só é fora do ponto de origem, fora do imediato, afirmação do contado. Ele negou as sereias, elas assim o aceitaram e fizeram da sua história o seu tumulo, lá elas também já cantam, mas vencidas, sem a indecidibilidade do instante no qual convidam a origem.

 

Mas peraí: então sobreviver às sereias, as tendo encontrado, é a fortuna de Ulisses?

A lei secreta da narrativa

 

Há sempre uma luta obscura entre a narrativa e o encontro com as sereias, esse canto enigmático que é poderoso pela sua falha. (como reabrir essa frase depois de tudo isso? O poder está na falha? Em dar a direção e não o próprio lugar?)

Luta em que a prudência de Ulisses é tradição.

O romance nasceu dessa luta.

Qual a diferença entre romance e narrativa?

A narrativa começa onde o romance não avança e todavia conduz pelas suas recusas e pela sua rica negligência. A narrativa é heroicamente e pretensiosamente a narrativa de um único episódio, o do encontro entre Ulisses e as sereias.

E retorna a ameaça daquela postura outra vez latente:

Estamos longe de pressentir o caráter da narrativa quando vemos nela o relato de um acontecimento excepicional que alguém tentaria reproduzir... o canto das sereias não é especial, mas comum, singular.

Outra concentração: a narrativa é o movimento para um ponto, não apenas desconhecido, ignorado, estranho, mas tal que parece não ter, antecipadamente e fora desse movimento, qualquer espécie de realidade, e tão imperioso no entanto que só ele atrai a narrativa, de modo que essa nem sequer pode ‘começar’ antes de o ter atingido, e no entanto apenas a narrativa e o movimento imprevisível da narrativa fornecem o espaço onde o ponto se torna real, poderoso e atraente.

 

Quando Ulisses se torna Homero

 

Ouvir o canto das sereias é, para aquele que era Ulisses, passar a ser Homero, e no entanto apenas na narrativa Homero realiza o encontro real em que Ulisses se torna aquele que entra em contacto com a força dos elementos e com a voz do abismo.

 

Reunir no mesmo espaço Ulisses e as sereias, Achab e a baleia, eis o voto secreto que faz de Ulisses Homero e de Achab Melville e do mundo que resulta dessa união maior o mais terrível e o mais belo dos mundos possíveis. Um livro afinal, nada mais que um livro.

 

Quem escreve é quem coloca no mesmo mar Ulisses e as sereais, essas potências que querem tudo, que desejam o encontro onde a coexistência seria impossível – a escrita desse encontro é quem assina.

 

qual a diferença entre Ulisses e achab? Melville e Homero? –

 

 

A metamorfose

 

a ação que a narrativa torna presente é a da metamorfose.

A narrativa tem para progredir esse outro tempo, essa outra navegação que faz com que o tempo real se torne pouco a pouco embora imediatamente  (tempo da metamorfose) imaginário, canto enigmático, que permanece sempre à distância e designa essa distância como um espaço a percorrer e o lugar aonde conduz como o ponto onde cantar deixará de ser um logro.

 

A narrativa quer percorrer esse espaço e o que a move é a transformação exigida pela plenitude vazia desse espaço, transformação daquele que escreve e da própria narrativa. A narrativa não cessa de caminhar para esse ponto de encontro, encontro que ocorre agora e esta sempre por vir.

 

Onde está o nó dessa transformação? No tempo: tempo próprio da narrativa, que se introduz na duração do narrador de uma maneira que a transforma, tempo das metamorfoses onde coincidem, numa simultaneidade imaginária e sob a forma do espaço que a arte busca realizar, os diferentes êxtases temporais.

Aqui se abre mais questionamentos e a passagem ao próximo texto: um encontro que é agora e resta sempre por vir acontece apenas com uma mutação da noção de tempo e que chama Proust. Qual é esse tempo em que os tempos se sobrepõem, em que por vir e agora, e desde sempre coincidem?


II-  A EXPERIêNCIA DE PROUST

 

O segredo da escrita

 

Pode haver narrativa pura? Toda a narrativa, quanto mais não seja por discrição, procura dissimular-se na espessura romanesca. E assim, há escritores que fazem dessa espessura um espaço cintilante, há Proust para quem tudo se passa como se ela se sobrepusesse com êxito à navegação da sua vida real, aquela que o levou através do tempo destruidor, até ao ponto fabuloso onde encontra o acontecimento que torna possível a narrativa.

 

A narrativa – essa narrativa que não está em todas as palavras dos romances, mas que só em alguns se manifesta - só é possível no encontro com o acontecimento? Ela é esse próprio acontecimento, como foi dito no texto anterior?

 

Os quatro tempos

 

Há o tempo real, destruidor, que produz a morte e a morte do esquecimento. O mesmo tempo, através da ação destruidora nos dá também o que nos tira, e infinitamente mais, pois que nos dá as coisas, os acontecimentos e os seres numa presença irreal que os eleva a esse ponto em que nos comovem – felicidade das lembranças espontâneas.

 

Reviravolta mais estranha do tempo e que interessa aqui:

Aquele incidente insignificante que ocorreu a um dado momento e que esquecido, ou que passou despercebido, eis que o curso do tempo o traz de novo, não como uma lembrança, mas como um fato real, na língua de Proust uma sensação, que ocorre de novo, num novo momento do tempo.

O passo em Guermantes e o passo em Veneza subitamente sobrepostos, rasgando a trama do tempo  através desse rasgão introduzindo um novo tempo: fora do tempo, diz Proust com precipitação. Diz ele: o tempo é abolido, uma vez que, simultaneamente, num gesto real, fugidio mas irrefutável, eu agarro os instantes  - não um passado e um presente, mas uma mesma presença que faz coincidir numa simultaneidade sensível momentos incompatíveis, separados por todo o curso da duração. Eis, pois, o tempo apagado pelo próprio tempo: eis a morte que é obra do tempo, suspensa, inofenciva, neutralizada.

 

Liberto da ordem do tempo: essa mudança que prenderia a narrativa na sequencia, essa transformação é o que a funda? Mas, se está abolida ou suspensa a sequencia, isso não pode acontecer como instante que prediz a obra, mas instante simultâneo a ela?

 

Viver a abolição do tempo, viver esse movimento, rápido como um relâmpago, pelo qual dois instantes, infinitamente separados, vêm pouco a pouco embora imediatamente (tempo das metamorfoses) ao encontro um do outro, unindo-se como duas presenças que, pela metamorfose do desejo, se identificasse, é percorrer toda a realidade do tempo, e ao percorrê-la experimentar o tempo como espaço e lugar vazio, quer dizer, livre dos acontecimentos que habitualmente o preenchem. Tempo puro, sem acontecimentos, vacância movente, distância agitada, espaço interior em devir onde os êxtases do tempo se dispõem numa simultaneidade fascinante, que é então tudo isso? O próprio tempo da narrativa, o tempo que não está fora do tempo, mas que se experimenta como exterior, sob a forma de um espaço, esse espaço imaginário onde a arte encontra e dispõe os seus recursos.

 

O tempo é o passo. É preciso que tudo seja simultâneo para que a narrativa possa ser o gesto de contar – colocar em sequencia de palavras – esse simultâneo que é o canto das sereias? Assim, que as sereias façam da narrativa o seu túmulo é necessário que o tempo nelas seja esse da simultaneidade? Onde está Nietzsche nisso?

 

O tempo de escrever

 

Para Proust, a experiência desse tempo é a única possibilidade da escrita.

 

A transformação do tempo num espaço imaginário – essência da literatura:

O tempo transformado num espaço imaginário – espaço próprio das imagens – nessa ausência movente, sem acontecimentos que a dissimulem, sem presença que a obstrua, nesse vazio sempre em devir: esse longe e essa distância que constituem o meio e o princípio das metamorfoses e daquilo que Proust chama metáforas, aí onde já não se trata de fazeer psicologia, mas pelo contrário já não há interioridade, pois tudo o que é interior se desdobra para fora, tomando aí a forma de uma imagem. Sim, nesse tempo, tudo se torna imagem, e a essência da imagem consiste em ser inteiramente sem intimidade, e no entanto mais inacesível e mais misteriosa que o pensamento do foro íntimo; sem significação, mas apelando  à profundidade de todo o sentido possível: irrevelada e contudo manifesta, dotada dessa presença – ausência que constitui o atractivo e o fascínio das sereias.

 

Gente!: que relação é essa? O canto das sereias chega tb aqui, como se aquilo que com ele anuncia é a própria essência da literatura? Qual a realçao entre o espaço imaginário e o canto imperfeito?

 

Onde se produziu esse experiência (a da sopreposição temporal)? Em que tempo? Em que mundo? Em quem?

 

Essa experiência só acontece no tempo da narrativa: quando não é já o Proust real, nem o escritor que tem o poder de falar, mas a sua metamorfose nessa sombra que é o narrador ao tornar-se personagem do livro, o que na narrativa escreve uma narrativa que é a própria obra e que produz por sua vez as outras metamorfoses dele próprio que são os diferentes eus cujas experiências conta. E, do mesmo modo, o acontecimento que descreve não é apenas o acontecimento que se produz no mundo da narrativa, nessa sociedade Guermantes que não tem verdade a não ser pela ficção, mas acontecimento e advento da própria narrativa e realização, na narrativa, desse tempo original da narrativa que ele se limita a cristalizar numa estrutura fascinante, esse poder que faz coincidir, num mesmo ponto fabuloso, o presente, o passado, o futuro, pois que nesse ponto todo o futuro da obra está presente, é dado com a literatura.

 

Onde se encontram todos os instantes do tempo? Na idéia de condição? Condição da narrativa? Condição da literatura? O canto das sereias é uma condição?

 

Imediatamente embora pouco a pouco

 

O nada que o chama.

A revelação não é de modo algum o efeito necessário de um desenvolvimento progressivo: tem a irregularidade do acaso, a força gratuita de um dom imerecido que em nada recompensa um longo e Sábio trabalho de aprofundamento.

O canto das sereias, a irrupção do espaço imaginário escapa ao poder dizer? Ela é acontecimento? Então escreve-se, escreve-se e essa passagem chega ou não? E como a percebemos?

 

O apelo do desconhecido

Quando o encontro dos instantes temporais abrem o espaço imaginário, engendra-se também e desde sempre um movimento sem repouso no qual esses instantes escapam a fixação – apelo do desconhecido?

 

A espantosa paciência

domingo, 24 de maio de 2009

gente,
onde estamos?

sexta-feira, 1 de maio de 2009

"Viemos de longe,
do que é passado e do que está dentro de nós,
de outros idiomas, de países que se amam. Aqui estamos nós,
que esta noite é o centro do mundo.

Viemos da química, dos microscópios, da cibernética,
da álgebra, dos barômetros, da poesia para nos reunir
aqui. Viemos da escuridão de nossos laboratórios para encontrar a luz que nos honra e, nesse momento, nos deslumbra. Porque para nós, os laureados, é uma questão tanto de paixão como de dor."
P. Neruda.

Herbert Draper, Ulisses e as Sereias 1909

quinta-feira, 30 de abril de 2009

textos de Maurice Blanchot:


Thomas l'obscur, Paris Gallimard, 1941.

Comment la littérature est-elle possible?, Paris, José Corti, 1942.

Aminadab, Paris, Gallimard, 1942.

Faux Pas, Paris, Gallimard, 1943.

Le Très-Haut, Paris, Gallimard, 1948.

L'Arrêt de mort, Paris, Gallimard, 1948.

La Part du feu, Paris, Gallimard, 1949.

Lautréamond et Sade, Paris, Minuit, 1949, ed. revista em 1963.

Thomas l'obscur, (nova versão) Paris Gallimard, 1950.

Au moment voulu, Paris, Gallimard, 1951.

Le ressassement éternel, Paris, Minuit, 1951.

Celui qui ne m'accompagnait pas, Paris, Gallimard, 1953.

L'espace littéraire, Paris, Gallimard, 1955.

Le dernier homme, Paris, Gallimard, 1957 (nova versão em 1977).

Le livre à venir, Paris, Gallimard, 1959.

L'attente l'oubli, Paris, Gallimard, 1962.

L'entretien infini, Paris, Gallimard, 1969.

L'amité, Paris, Gallimard, 1971.

Le Paus au-delá, Paris, Gallimard, 1973.

La Folie du jour, Montpellier, Fata morgana, 1973.

L'ecriture du désastre, Paris, Gallimard, 1980.

De kafka à kafka, Paris, Gallimard, Folio, 1981.

Le Bête de Lascauz, Montpelier, Fata morgana, 1982.

Aprés coup, précédé par Le ressassement éternel, Paris, Minuit, 1983.

La communauté inavouable, Paris, Minuit, 1983.

Le dernier à parler, Montpellier, Fata morgana, 1984.

Michel Foucault tel que je l'imagine, Montpellier, Fata morgana, 1986. 

"Qui?", Cahiers Confrontations n.20, 1989.

Une voix venue d'ailleurs, Paris, Ulysse-fin de siècle, 1992.

L'instant de ma mort, Montpellier, Fata morgana, 1994.

Les intellectuels en question, Fourbis, 1996.

Pour l'amitié, Fourbis, 1996.